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A revisão da fala mineira


Marcos Bagno, Correio Braziliense Publicado em 26 de maio 1991


Os poucos brasileiros que, cultivando o acintoso hábito de ler (num país onde milhões de pessoas são criminosamente mantidas no analfabetismo), se deixam guiar pelas listas de livros mais vendidos elaboradas por revistas e suplementos literários que só falam do que acontece em São Paulo, no Rio e em Nova Iorque, certamente não terão ouvido falar de Stela Maris Rezende. Afinal, ela não é professora de pós-graduação da USP, não conta com nenhuma campanha de marketing de grande editora, não escreve sobre baixo esoterismso e bruxaria de meia pataca, não é autora de biografia nem é afilhada de Rubem Fonseca. No entanto, Stela Maris Rezende, mineira radicada em Brasília, é, sem dúvida, uma das maiores escritoras do Brasil nestes tristes dias que correm Recentemente, dois de seus livros, O último dia de brincar e Alegria Pura, foram incluídos numa relação de “destaque da década” na área infanto-juvenil. Mas o que será literatura infanto-juvenil? Será mesmo necessário rotular a literatura em gêneros? As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, foram escritas para adultos: trata-se de uma severa crítica do autor à politica britânica de sua época. Hoje, porém, o livro é vendido para crianças, tendo sido inúmeras vezes adaptado para o cinema e a televisão sob a forma de desenho animado. Já as aventuras de Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll, foram presumivelmente concebidas para a diversão das crianças, e hoje a obra é objeto de verdadeiro culto entre os conhecedores da literatura inglesa, pelo que tem de revolucionário do ponto de vista lingüístico, narrativo e até psicanalítico. A obra de Stela Maris Rezende se situa exatamente nesta faixa de indeterminação dos gêneros, embora as editoras que publicam seus livros se limitem a rotulá-los, por razões comerciais de divulgação junto às escolas, de “infanto-juvenis”. Se é verdade que suas personagens são invariavelmente crianças e adolescentes, isso não é suficiente para aquela rotulação. Na verdade, a obra de Stela Maris Rezende pertence àquele gênero literário onde, por assim dizer, nada acontece a não ser literatura... Uma obra em que o mais importante é o labor poético, a transfiguração das palavras, o bordado sutil das imagens: “O sol era doce. A chuva é que viera mas muito de delicadeza de chuva lerda, era só um claro de querer os boizinhos tristes, os samburás de abacate, o carro-de-boi salpicadinho de orvalho”. Não é por outra razão que Clarice Lispector preferiu chamar suas últimas obras simplesmente de “ficções”, que Guimarães Rosa batizou as novelas de Corpo de baile ora “romances”, ora “poemas”, ora “contos”, ora “estórias”, e Osman Lins deu aos contos de Nove, novena o rótulo generalizador de “narrativas”. É que nestas obras a linguagem perde o chão firme da prosa e se deixa carregar, atônita, pelos redemoinhos da poesia. Um sempre mesmo cenário: Dores do Indaiá. Mas a Dores do Indaiá que os livros de Stela recriam provavelmente nada tem a ver com a cidade do interior de Minas Gerais onde ela nasceu, assim como nunca haveremos de encontrar fora do romance o grande sertão de que nos fala Guimarães Rosa. Porque é difícil imaginar uma cidade mineira hoje sem automóvel, sem televisão, sem telefone, sem outras utilidades e futilidades do assim chamado progresso. Stela Maris, de fato, não nos descreve Dores do Indaiá; o que faz é colher da memória um tempo-espaço, indefinido, certamente passado, mas que dispensa datas precisas. Tempo de tradições vividas sem mistério, tempo de bordar, de cozinhar arroz-doce, de fazer chá de mil plantinhas diversas, de fazer promessa à santa padroeira, tempo de ter tempo de ter saudade. Numa época em que a ecologia virou bandeira de gregos e goianos e, muitas vezes, veículo de escapismo e alienação de outros problemas igualmente sérios, os livros de Stela Maris são doces manifestos em favor de uma vida ecológica, mas sem alardes panfletários: uma vida na simplicidade, no convívio com palavras antigas, na pacata consciência de um mistério maior que todo saber humano. A língua de Stela Maris é uma reinvenção do falar do mineiro do interior. Reinvenção porque não se obriga a nenhuma tarefa de documentação, de transcrição fiel, não se obriga a ser retrato autêntico de nada. Reinvenção, esta sim, tarefa do poeta. Escreve sem nenhum preconceito gramatiqueiro, sem temor de patrulhamentos ortográficos e sintáticos, o que dá a seus diálogos um sabor de café com leite bem doce para ser tomado com rosquinhas de polvilho: - “Menina borrecida, quieta o facho, não está vendo que eu estou proseando aqui mais a comadre, ô Divino Pai Eterno, a gente não tem sossego nem pra destramelar a língua que essa menina já vem ô mãe, ô mãe, fala, menina, fala, você quer beber mais coalhada?” Para mineiros exilados, uma oportunidade de recordação; para não mineiros, a descoberta de um português macio, mimoso, nem certo nem errado, diferente, mas sem intenções folclorizantes, sem regionalices premeditadas, apenas vozes gravadas na memória: “Orquisa fechou os olhos, vai e vai, Orquisa balangando na cadeira de vime: A Tonhita havera de desvelar um molde da Idalina ter querença de morar em Dores do Indaiá o resto da vicissitude dela”. Stela parece colher as palavras como quem vasculha uma horta à cata das ervinhas exatas para cada chá: “Conheço alma de cada ramilhete de planta”, diz uma personagem sua. Stela também domina esta ciência de conhecer a alma de cada pedacinho de palavra, de cada nome sugestivo. Suas frases são gostosas como queijo-de-minas, como doce-de-leite. Coleciona nomes. Nomes de planta: sebastião-de-arruda, angelim-rasteira, rajadeira, araçá-do-brejo, murta-de-parida, frei-jorge, bordão-velho, colher-de-vaqueiro, grosso-aí, calcanhar-de-cutia, tingui-capeta. Nomes de pontos de bordado: ponto cheio, ponto de areia, ponto de meia, ponto-atrás, ponto de haste, festonê, canutilho, ponto de cadeia. Nomes das cidades mineiras: Heliodora de Funchal, Corguinho do Barro, Amparo da Serra, Claro dos Poções, Pedra do Anta, Santana do Garambéu, Morro do Pilar, Várzea da Palma, Entre Folhas, Amanhece, Morro da Garça, Retiro da Roça, Água Friinha, Baldim, Cercadim, Chonin, Matipó, Fitico, Dores do Turvo, Dores de Guanhães, Resplendor. Nomes de mulher, colhidos e inventados: Bigail, Varduína, Mundiquinha, Olivina, Belozina, Mariã, Anitó, Cefânia, Tonhita, Dulcisa, Vandira, Polidora, Gaudéria, Mariinha. A poesia se faz com palavras e só, parece nos ensinar, Stela Maris Rezende, ciente de que fora da poesia não há salvação. Nos contos-poemas de Stela, uma aposta radical na mulher. Suas personagens flutuam sempre num mar de feminilidade. Seu universo, assim, é inevitavelmente líquido e cambiante, ora turvo, ora cristalino, ora açude tranqüilo e límpido, ora rio barrento de corredeira. O homem aparece quase sempre como o jovem rapaz, uma esperança de homem novo, uma promessa de transformação de figura pré-histórica do pai provedor, do chefe de clã, do macho insaciável. Volta e meia, Stela nos mostra um quadro de inocente poliandria: várias mocinhas que compartilham, sem complicações, o amor de um mesmo rapaz. Será porque anda grande a escassez de homens dignos de amor? E uma interessante estatística: uma alta porcentagem das meninas e moças da ficção de Stela são filhas de pais separados, vivendo com a mãe que finalmente decidiu abandonar um marido-pai indesejável. Este traço de contemporaneidade vem aproximar do nosso presente o cenário da cidadezinha interiorana aparentemente parada no tempo.(...) O primeiro conto de O último dia de brincar, “Feitiço”, é a melhor porta de entrada para a ficção de Stela Maris Rezende: quem não conseguir se enternecer às lágrimas com a história de Dorinha e seu saco de terra pode abandonar de vez qualquer esperança de algum dia penetrar os mistérios profundos da poesia. Depois deste primeiro contato, é indispensável que se leia O sonho selvagem, (editora Moderna, São Paulo), um livro curto e belo, de uma densidade lingüística, de uma investigação mística e sentimental comparáveis à de uma estória de Guimarães Rosa. Neste conto podemos encontrar um dos artifícios mais característicos da prosa poética de Stela Maris: a narrativa em espiral. A autora presenteia o leitor com alguns temas-novelos que ela vai progressivamente retomando e desenrolando, num movimento espiralado, que aos poucos vai desvendando a intimidade da personagem. Um movimento que lembra o de um redemoinho, um redemunho de vento, como o que envolve o sonho selvagem, amor camuflado de crueldade, da menina Ângela: “Tem a ventania. O vento brabo da montanha. Um redemunho que não acaba”.

Marcos Bagno é doutor em Lingüística, tradutor, poeta e ficcionista premiado


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