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Resenhas sobre "A menina Luzia"


A menina Luzia, de Stella Maris Rezende
Sob a pele das palavras há cifras e códigos. (Verso do poema A Flor e a Náusea de Carlos Drummond de Andrade)
Em entrevista concedida logo após haver recebido o prêmio Jabuti 2012, pelo seu livro A mocinha do mercado central, Stella Maris Rezende define o seu trabalho declamando esse verso do grande poeta mineiro. Para a autora, o silêncio em seus textos é muito importante e, junto às palavras, ela deixa lacunas, vazios, espaços a serem preenchidos pelo leitor. A sua memória de Dores do Indaiá, cidade mineira onde nasceu, ela resgata por meio da utilização de um universo imagético típico da região: “Guardar uma coisa no samburá é muito diferente de segurar a alegria no coração. Isso Luzia assuntou naquela tarde com muita chuva, o corpo repassado em doença de caroço de pele, tia Belozina fazendo chá de sabugueiro para a Luzia tomar tudinho, gute, gute, gute, tia Belozina franzia a testa, atazanada.” (RESENDE: 2012, p. 10), e o mistério interior de suas personagens agrega contemporaneidade à sua obra, através de uma literatura que exige maturidade de espírito e capacidade de reflexão do leitor.

Nívia de Andrade Lima | In: Sede de Ler, seção Resenha, março de 2016, página 32.

 
A menina que luzia
A primeira namorada, tão alta que o beijo não a alcançava, o pescoço não a alcançava, nem mesmo a voz a alcançava. Eram quilômetros de silêncio. Luzia na janela do sobradão. (Carlos Drummond de Andrade. Orion).
Carlos Drummond de Andrade, no poema “Orion”, utilizou o vocábulo “Luzia” de forma dicotômica. Quem luzia? Seria a estrela da constelação “Orion” ou Luzia era a moça que ficava na janela do sobradão? Luzia é substantivo próprio ou é a 3ª pessoa do singular do imperfeito do verbo luzir? (Atente-se para a irregularidade deste verbo. É defectivo). Continua o “Claro Enigma”. No romance juvenil de Stella Maris Rezende – “A menina Luzia” (Ed. DCL, 2012), o mesmo vocábulo empregado por Drummond – Luzia/luzia aparece com sentido semelhante. Luzia é nome da protagonista, mas é, também, verbo. Examinemos este pequeno poema inserido no livro:
Em Luzia uma menina. Tarcísio não vê. Uma menina. Rodando, rodando, rodando. Uma menina que luzia Tarcísio não vê. (2012, p. 29)
Em outra passagem do livro, a ambiguidade se faz presente, agora, em forma de prosa:
A escuridão do terreiro luzia dentro do coração. Dona Lilina sabia. Só Tarcísio não sabia. (p.40)
O enredo do romance é bem simples – uma mocinha chamada Luzia apaixona-se por um rapaz magricela que atende pelo nome de Tarcísio. A mocinha utiliza múltiplos recursos para ser notada, mas tudo parece ser inútil. Olhares furtivos, visitas frequentes à casa da mãe de Tarcísio (Dona Lilina), nada desperta o interesse do rapaz. Ele só pensa em brincar com o cachorro e conversar bobeira na venda de Mário Coité. Condizente com a simplicidade da história, Rosinha teceu a capa e as ilustrações das páginas internas do livro com leves desenhos de bordados na cambraia de linho. Para cada página, um traçado diferente. Rendas e bicos se entrelaçam com a própria cambraia feita toda de traços muito delicados. O vocábulo tecer tem sentidos múltiplos, utiliza-se para indicar o ato de escrever, bordar, desenhar. As ilustrações de Rosinha se destacam como um bordado de linhas. Não faltam, neste livro, referências aos sabores da gostosa culinária mineira – o doce de ambrosia que Luzia aprendeu a fazer com a mãe e as jabuticabas madurinhas colhidas no pé. Para Peter O´Sagae, crítico literário e especialista em literatura infantil, esta obra de Stella Maris Rezende revela aos jovens leitores “o sabor das descobertas e o tempo de espera que o amor inventa, em uma linguagem brejeira que caracteriza o universo literário da autora. – de uma beleza só, inocência, doce de malícia, às vezes ambrosia.” (Da orelha do livro “A menina Luzia’). Com Drummond, Stella Maris Rezende aprendeu a olhar para as estrelas e a poetizar. Como a moça do sobradão, com os cotovelos apoiados no peitoril da janela, Luzia fitava a escuridão, via o tempo fugir. No devaneio, repetia baixinho: “Ainda é cedo [...] cedo para dormir ou cedo para sonhar que Tarcísio olhe para ela” (p. 39). Com Guimarães Rosa, a escritora aprendeu que as palavras têm “canto e plumagem” e Cecília Meireles deu-lhe ainda, esta lição: é preciso reinventar não apenas a vida, mas as palavras. Se de tudo fica um pouco, como bem disse Drummond, ficou um pouco da beleza desta prosa poética. Saber lidar com as palavras nem sempre é uma luta vã. Stella Maris Rezende guardou as lições dos mestres.

Neide Medeiros Santos é doutora em Estudos Literários – UNESP/Car, leitora votante da FNLIJ e colunista do jornal “Contraponto”. | 2013

 
Doce Stella. Mais uma obra de dar água na boca, heim? Li A menina Luzia, ontem, de uma tacada só. Impossível começar e não terminar, de tão gostoso que é. O livro é uma receita deliciosamente doce e poética da boa e terrível complicação do amor. Amor verde, amor de juventude, primeiro amor, meu primeiro amor. Doce amargo amor. Amor de Luzia por Tarcísio, que não a enxerga como Luzia, mas como uma, duas, nenhuma, todas, qualquer uma, menos Luzia que faz ambrosia. Menos Luzia da blusa de Lese, menos Luzia que não sabe o segredo da Dona Lilina, menos Luzia que tem uma gamela cheinha de jabuticabas docinhas para Tarcísio, menos Luzia das mãos trêmulas na gamela, menos Luzia do coração monjolo socando milho e batendo por ele, ah, Tarcísio! O fio da história vai sendo tecido, a medida em que o doce vai sendo aprontado.
“Doce, doce, caiu no laço. Luzia faz ambrosia. Doce de ovos no tacho de cobre. Caiu no laço, doce, doce.”
E tive vontade de comer ambrosia. E tive vontade de fazer ambrosia. E logo eu, que não cozinho nada, nadinha. Mas eu queria porque queria. Fazer a ambrosia de Luzia. Seguir a receita de Luzia. Que tinha no livro de Luzia. No livro de Luzia tinha receita de ambrosia. Eu lia, eu via, e eu queria. Comer o doce de Luzia. Comer a ambrosia de Luzia. E tem mesmo a receita do doce no decorrer do texto, eu fui marcando as passagens, fui juntando as partes da receita nas páginas: 9, 11, 19, 21, 24, 27, 29 e 32, pronto! Tenho a íntegra da receita! Pretendo, futuramente, fazer a ambrosia de Luzia. Muito interessantes as descrições do estado do coração de Luzia. Os versos desenham com precisão a cadência das emoções vividas pela menina:
“Monjolo socando milho, mão de almofariz, o coração de Luzia.”
“O coração de Luzia é aquela massa para biscoito de polvilho, massa espremida no pano, para fritar no óleo quente da panela de ferro.”
Outra característica, o poema vai crescendo no decorrer do texto, e lá pela quadragésima página, ele aparece fazendo a retrospectiva dos versos transcorridos até então. O nome de Lilina é substituído por uma característica – “Lenço xadrezinho na cabeça:” Isso ficou engraçado. Gostei disso, demais da conta. Gostei também do jogo de hífens da palavra criado—mudo. Para finalizar, não poderia deixar de falar da ilustração de Rosinha. Foi o arremate! Um doce! Casadinhos, livro-ilustração, bem-casados, um doce! Um grande beijo e obrigado por compartilhar conosco, leitores, a sua criatividade, que sempre me surpreende. Jaque, que gosta de doce, que gosta de ambrosia, que gosta da enredada vida de gostar de Luzia, de gostar de Stella.

Jaqque Monteiro | 2012

 
Até parece que não sabe como pensa o pensamento, esse novelo que dói e desata em imagens de desejos dentro da gente, adquirindo ritmo, rindo nas cadências do mundo, mão de monjolo, pedra de rio, lavadeira batendo roupa, histórias para viver silenciosamente. Pela janela dos olhos, Luzia vê e sente o vento levando as folhas da jabuticabeira para o chão, o relâmpago do beija-flor, a primeira paixão. Uma noite, uma menina que luzia, o coração tinindo, tão do jeito que ela é, mas Tarcísio nem vê. A obra de Stella Maris Rezende ainda revela aos jovens leitores o sabor das descobertas e o tempo de espera que o amor inventa, em uma linguagem brejeira que caracteriza o universo literário da autora – de uma beleza só, inocência, doce de malícia, ambrosia.

Peter O. Sagae, Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo e especialista em Literatura Infantil e Juvenil. | In: orelha do livro "A menina Luzia" | 2012

 
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