top of page

Resenhas sobre "O último dia de brincar"


O último dia de brincar Anna Cristina Rodrigues
Gente é bicho muito difícil da gente entender, cruz-credo. Mas difícil não quer dizer impossível. Talvez por isso passamos a vida inteira tentando entender o fascínio que algumas pessoas sentem por certas coisas, por exemplo, por um saco cheio de terra escondido dentro do guarda-roupa. Mas há outros comportamentos ainda mais difíceis de serem compreendidos: o preconceito, que pode se manifestar contra classe social, raça, religião, nacionalidade e até tamanho do pé ou o fato de ter a mãe largada do marido. Entender esses comportamentos não é fácil, mas pensar e falar sobre eles é urgente e todos nós, de alguma maneira, tentamos. Alguns, com muita dificuldade; outros, com maestria. E nessa última categoria está Stela Maris Rezende, autora do livro O último dia de brincar. E a arte é tanta... e a maestria é tanta, que o livro não é só uma leitura imperdível como também é obra premiada (Prêmio João-de-Barro-1986). Nas páginas desse livro, o leitor vai conhecer a Dorinha e seu fascínio por um saco cheinho de terra; Sá Natércia e Dona Carmosina, que desistem de compreender a paixão de Dorinha e a acompanham nessa paixão; Mariinha, que não entende o preconceito e se irrita com ele; Polidora, um tifuque de tão pretinha, mas reproduzindo esse comportamento incompreensível. É só? Não, tem muito mais! Tem a paixão literária de duas meninas: pela Clarice, aquela do coração selvagem, e pela Cecília, aquela da viagem. Todo esse conteúdo assume no livro forma admirável: uma linguagem fluente, que surpreende, causa estranhamento e atrai. Tudo ao mesmo tempo. É uma linguagem mineira: montanhosa e férrea, assim descrita por Laura Sandroni: A linguagem resgata o falar regional cheio de graça em sua simplicidade, o que poderá ser observado em salas de aula ao recuperar vocábulos em desuso da expressão popular. Pode ser. E certamente é cheia de graça em sua simplicidade interiorana. Mas em desuso? Certamente não. Quase posso ouvir tais vocábulos brotando nas bocas mineiras ainda hoje. Por tudo isso, O último dia de brincar foi premiado, considerado Altamente Recomendável para Jovens pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, incluído no primoroso acervo do Programa Nacional Biblioteca da Escola, do Ministério da Educação, e selecionado entre os melhores livros para jovens publicados na época. É preciso dizer mais? Então aí vai: vamos dar aos nossos alunos, tão carentes de arte e poesia, a oportunidade de conhecer a Dorinha, a Célia, a Clara, a Mariinha e a Polidora e ainda suas paixões, alegrias e tristezas. Eles merecem isso!

Anna Cristina Rodrigues é professora, editora e especialista em Literatura Infanto-Juvenil

Jornal de Brasília, quarta-feira, 16 de maio de 2001

 
Literatura temperada com emoção Tatiana Belinky
Stela Maris Rezende (atenção para este nome!) acaba de ganhar o Prêmio Nestlé de Literatura Infanto-Juvenil de 1988, e estou com muita vontade de ler esse trabalho, isto porque “descobri” esta autora, ao receber, recentemente, da editora Miguilim, o seu livro O último dia de brincar, Prêmio João-de-Barro, Júri Adulto, de 1986, publicado em 1987. Pelo visto, trata-se de uma nova colecionadora de prêmios, “contista mineira” das melhores, que nasceu em Dores do Indaiá, “candanga” da primeira hora, que mora em Taguatinga, cidade-satélite de Brasília.(...) O último dia de brincar agarra o leitor desde as primeiras linhas, a começar pela “voz” muito especial, linguagem própria, certo “sotaque”, certa música – coisas que, em suma, respondem pelo nome de “estilo” - coisa pouco comum mesmo entre os bons “contadores de histórias”. E isto ela certamente é: contadora de histórias. Que são quatro, nesse pequeno livro, de apresentação meio inusitada, com o texto impresso em duas colunas em “negrito”, com margens largas e bons espaços brancos, o que facilita a leitura, além de ser agradável aos olhos. Como o são também o projeto gráfico e as ilustrações de Vlad Eugen Poenaru, cujas criativas “gravuras” negras e vazadas, em alto-contraste sobre páginas inteiras em cartolina cinza-claro, fazem estimulante contraponto com as quatro, tão diferentes, histórias. O último dia de brincar, do título, é o dia em que Mariinha é proibida, pela avó, de brincar com a amiguinha Polidora, por ser esta “filha de mãe largada”. E Mariinha lembra, no seu gostoso “mineirês”, que a mãe dela, Mariinha, também não queria que ela brincasse com Polidora: “Ô Mariinha, eu acho uma coisa estúrdia você andar com a Polidora, porque, coitadinha, ela é tão pretinha...” As duas garotinhas resolvem não obedecer: “Mariinha pensava assim: gente é bicho muito difícil da gente entender, cruz-credo”. A mensagem antipreconceituosa “passa” natural, sem dedo em riste, embutida na história, e é assim que deve ser. Outra história, “Feitiço”, é sobre uma garotinha e um punhadinho de terra mágica, mas mágica mesmo, só vendo, ou melhor, só lendo. E a outra, “Parceria”, é sobre duas garotas amigas, Célia e Clara, que gostam de ler e de escrever, e que querem formar uma parceria mudando seus nomes para Cecília e Clarice, “paradigmas” que o leitor descobre, porque o texto não diz (mas dá a entender), serem nada menos que a Meireles e a Lispector. Na página 9, toda vazia, só lá em cima, a frase: “Na viagem do coração o sonho é sempre selvagem?” Pergunta que me remeteu direto para o outro livro de Stela Maris Rezende, do qual queria falar, que é: O sonho selvagem ( da ótima coleção Veredas, da editora Moderna). Livro pequeno, texto de umas 15 páginas, na verdade um conto – mas tão maior por dentro que por fora! Tão rico de sensibilidade, de emoção, de poesia, ao mesmo tempo suave e forte, e dramático, na sua linguagem toda especial, que chega ao ponto do leitor por vezes quase perder o fio da história, envolvido que fica mais pelo “como” do que pelo “que” ela conta... E aí acontece uma coisa boa: a gente tem vontade de reler uma página ou outra, e participar do desenvolvimento, crescimento e revelação do “coração selvagem” no nascer do amor entre dois jovens que no começo se enfrentam, se provocam, se “odeiam” e... mas para que falar do enredo? É preciso ler o livro, para curtir o saboroso “mineirês” da autora, o ritmo da sua narração, o clima, os diálogos, os nomes, e até as palavras – inzonando, fripinhas, lapeavam, embondo, pantasma – essas coisas... Os dois livros são muito, muito bons – e nem sei por que são classificados como infanto-juvenis ( o que não deixam de ser, mas “também”) – porque são literatura da boa, para qualquer idade.

Tatiana Belinky é escritora e crítica de Literatura

Jornal da Tarde, São Paulo, 20 de fevereiro de 1988

 
Pequenas histórias que são pura beleza
Reunindo pequenas histórias que envolvem o cotidiano de meninas em situações diversas, Stela Maris Rezende traz belezas novas para a literatura infanto-juvenil. De uma oralidade requintada, carregada de nuanças e meios-tons, sua narrativa dispensa todo tipo de obviedade, atendo-se ao estritamente necessário para a criação do “clima”. Tratando de temas como preconceito social contra filhos de pais separados ou incompreensão entre mães e filhas, jamais a autora cede ao fácil ou ao vulgar. Como um ourives de emoções, tudo nela é fino, delicado e, sobretudo, bem escrito, deliciosamente bem escrito.

Edmir Perrotti é crítico de Literatura e escritor

Revista Nova Escola, São Paulo, ano III, número 21, maio de 1988

 
O ultimo dia de brincar foi a obra que, ao receber o Prêmio João-de-Barro, da Prefeitura de Belo Horizonte em 1986, revelou Stela Maris Rezende, autora que pela originalidade de seu estilo, tornou-se importante na literatura para crianças e jovens produzida no Brasil, para a qual continua a contribuir com assiduidade e reconhecida qualidade. O livro constitui-se de pequenos contos que retratam o cotidiano infantil nas pequenas cidades do interior do país. “Feitiço” narra o encantamento de Dorinha pela terra, a ponto de guardar em seu armário uma caixa contendo um saco cheio dela. “Parceria” fala do desejo de ser escritora expresso em pequenos bilhetes que duas colegas de classe trocam com freqüência. “Uma idéia de amar” também refere-se, de forma metafórica, ao ato de escrever. As idéias de ver, querer, ter, conhecer, esquecer, escrever e ler estão interligadas e expressas na palavra escrita e contêm a idéia de amar. O último dia de brincar tem tratamento mais realista ao descrever a brincadeira de comidinha entre quatro amigas. No meio da conversa surgem preconceitos, ouvidos dos adultos, que quase acabam com a amizade entre elas, mas logo são superados. Nesse bordado de pequenas intrigas, Stela Maris Rezende compõe um vigoroso painel tecido por delicados fios. A natureza é onipresente, assim como em todos os detalhes está o interior de Minas Gerais, terra de nascimento da autora. A linguagem, principal característica de seu estilo, é muito trabalhada e resgata o falar regional cheio de graça em sua simplicidade, o que poderá ser observado em salas de aula ao recuperar vocábulos em desuso e demonstrar a riqueza da expressão popular. Os desenhos a nanquim de Vlad Eugen Poenaru, valorizados pelo papel cartonado no qual são impressos, dão um toque de modernidade à edição cuidada.

Laura Sandroni é crítica de Literatura e ensaísta

Site da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Rio de Janeiro

 
Este segundo livro de Stela Maris Rezende surge maduro. Em sua filiação a uma linhagem regionalista à feição de Guimarães Rosa, a autora costuma levar seus personagens a se posicionarem na vida de um ângulo pouco comum, em que há espaço para uma subjetividade rica e corajosamente defendida. Permeada pela poesia que flui do cotidiano, a linguagem da autora evidencia a vida como dádiva, abre o espetáculo do mundo à contemplação e fruição do indivíduo. Nomes de pássaros, plantas, frutas, doces, tarefas diárias e brinquedos vão sendo enunciados numa constante recriação de vida, propiciando o enlace profícuo entre estar e agir no mundo para bem construir o ser no mundo, como em Depende dos Sonhos (1991). Neste volume de pequenos contos, as personagens principais, todas femininas, são decididas, preservam e impõem sua verdade. Em “Feitiço”, Dorinha leva a mãe e a rezadeira a se renderem ao valor da terra que ela guarda com cuidado dentro do armário; em “Parceria”, duas amigas decidem antecipar seus destinos de escritoras, vivendo como aquelas a quem tanto admiram. Deixam de ser Clara e Célia para serem Cecília e Clarice. No conto que dá título ao livro, Mariinha intima a amiga Polidora a decidir se acata ou não a proibição feita pela avó de brincar com ela, filha de uma mulher largada do marido. Mariinha já havia se posicionado anteriormente com essa segurança, ao dizer à mãe que não ia deixar de brincar com a Polidora porque era negra. Pequena obra-prima, esse conto tem nele concentrada a mestria narrativa do volume, enquanto “Uma idéia de amar” enleva o leitor, densa como a voz dos grandes mestres e simples como a convicção dos clássicos, numa lição de metalinguagem literária. Ambientando as narrativas num espaço provinciano, Stela Maris discute as miudezas da vida, expondo preconceitos e coragens, num texto que suscita no leitor emoção e visão crítica. Membro de uma linguagem literária habitada pelos grandes regionalistas e poetas como Manuel de Barros e Drummond, cuja voz e reminiscências encontramos nesta obra singular, Stela Maris tem um lugar importante na nossa literatura, e um público cativo entre as crianças e os jovens. Este volume, de ilustração sóbria e de bom gosto acompanhando pictoricamente o texto verbal em seu projeto estético, é uma riqueza para o leitor com habilidade de leitura, permitindo a ele, além dos contos primorosos, o convívio com uma linguagem que sendo característica das “Gerais”, é a expressão de uma alma brasileira que se expõe inteira para o resto do país, na riqueza de suas variantes e experiências.

Site da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, Rio de Janeiro

Nilma Lacerda é doutora em Teoria Literária e escritora premiada

 
bottom of page